Wednesday, March 29, 2006

 

Segunda carta de uma flor para a menina longínqua e/ou Da arte do abraço e/ou Sinfonia nº 4 para cotovelos, umbigos, raízes e trompas

Com a vontade dos que têm fome
não me esqueço
de lavrar profundo o solo,
plantar suas sementes mais sutis,
guardar meu mundo
nas gavetas dos teus quadris
onde um dia encontrei um broto com meu nome...

Provo a densa seiva
ao morder o amargo de cascas...
talvez por muitas reticências,
algumas aspas,
talvez por isso não me ouça
e não me veja...

Com a euforia dos que têm sede,
olhando para a alta parede
deixo na janela entreaberta meu segredo...
quem sabe verde folha, uma dobra, um dedo...

Mas tenho raízes profundas de tantos instantes!
Cada um deles jamais foi escasso!
Se te sentes perto quanto mais distante,
fica nessa porta fechada o meu abraço...





deixado por João Victor junto a sapatos apertados... sem cadarços... e a um pequeno bilhete: "Fui afundar meus pés na terra..."... para alguém que me olha pela fresta da janela... lá de cima...

(do livro Silêncio, verde-bandeira e vermelho bordô)

Sunday, March 12, 2006

 

série ECOS

"[...]
Quem só tem certezas, ensina.
Quero aprender!
A cada certeza concebida,
Quando o óbvio mostra seu largo sorriso,
Ter a impressão de que o vejo pela primeira vez...
Um grau inclinado para um lado diferente.
Tudo muda.
E recomeça.
Como óbvio de aparência.
[...]"

trecho do poema Quase sei o que pensas da Ana...
postado por uma montanha que recebeu seu grito... ... ...
para alguém que parece ter certezas...

 

apenas uma linha...

Uma mulher não se interessa em receber flores sem raízes nos dedos.

Fabrício Carpinejar

postado pela mesma flor... ... ...

 

Minha filha comigo

Quando te levava para a escola, a pé,
com a mochila em uma mão e a merenda noutra,
segurava sua mãozinha com um único dedo.

O dedo como uma corda de pipa,
como pulseira de prancha,
como pequena folha de alface ao pássaro.

Não te puxei pelos cabelos.
Não te puxei pela gola da camisa.
Não te puxei pelos orelhas.

Te deixei mais ir do que vir.
Não dependo de toda a mão para te manter perto de mim.
Me dá a chance de falar e eu te protejo.



Fabrício Carpinejar
http://www.carpinejar.blogger.com.br/


postado por alguém que acaba de olhar a própria palma da mão escrita... ... ...

 

É.

"Era [...], era [...], Pedro, era [...] a minha fome... era [...] a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos[...]"

Raduan Nassar em Lavoura Arcaica, cortado...

postado por alguém que tem certeza no coração. Sim, certeza, no coração.

 

Da Mais Alta Janela da Minha Casa

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Alberto Caeiro


postado por uma flor com raízes fortes... ... ...

 

Grandes

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
Fim.

Álvaro de Campos


postado por alguém que foi arrumar as malas... ... ...

 

Ah, Wilde!

A mutilação do selvagem tem a sua trágica sobrevivência na própria renúncia que corrompe nossas vidas. Somos castigados por nossas renúncias. Cada impulso que aniquilamos germina em nossa mente e nos envenena.
Pecando, o corpo se libera de seu pecado, porque a ação é o único meio de purificação. Nada resta então a não ser a lembrança de um prazer ou a volúpia de um remorso.
O único meio de livrar-se de uma tentação é ceder a ela. Se lhe resistirmos, nossas almas ficam doentes desejando as coisas que se proibiram a si mesmas e que umas leis monstruosas fizeram monstruoso e ilegal. É no cérebro, e somente nele, que se alojam os grandes pecados do mundo.

Oscar Wilde

postado por... ... ... como se houvesse sido escrito na palma da mão... ... ...

 

O amor comeu... ... ...

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
[...]
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
[...]
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
[...]
Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
[...]
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


João Cabral de Melo Neto

postado por... ... ... (sim, comeu também meu nome...)

 

... ... ... ... .. .

As coisas que amo, deixo-as livres. Se voltarem foi porque as conquistei, se não voltarem, foi porque nunca as tive.

Fernando Pessoa


postado por... ... ... ... .. .. .

 

... ... ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caieiro


Postado por João Victor (-sim, acho que é esse o nome...) num momento de silêncio e busca de um espelho... talvez em palavras de outros... Pessoas...

Tuesday, March 07, 2006

 

Da arte do tropeço e/ou Da sabedoria dos pés e/ou Poema para calçar

Desde criança sei
(de um aprendizado com mãos sujas de cadarços):
laços...
não se quebram, viram nós
ou apenas se desfazem...
... sós ...


por João Victor, calçado com sapatos apertados...

 

Sinfonia nº 3 para tornozelos, dentes e orquestra e/ou Suíte Longínqua e/ou Andante

Vestia um sorriso...
Hoje apertado, carcomido, raso:
sem rosto, o rastro, o resto...
algo ao acaso...

... e não sou capaz de sozinho ocupar
a suspensão desse tempo de agora,
liame frágil de cada lugar
que se desfaz, desiste ou se escora,

lacunas, crateras pelas estradas,
seus pés, minhas pegadas
(e seus olhos, onde?)...
tenha paciência até chegar...
às vezes sou longe...



por João Victor, para alguém com quem aprendi a andar de mãos dadas...

Friday, March 03, 2006

 

Flor-granizo e/ou Dentes de outono e/ou Sinfonia nº 2 para estômago, esôfago e piano e/ou Da saudade

Do comprimento de olhos semi-cerrados:
esta é a medida da palavra,
mesmo que fora de foco,
mesmo que enferrujada...

... e existia ali nas tripas, tatuada,
a palavra, vazia, pois que
o que lhe dava peso me subia
garganta acima, triste,
palavra que só em minha língua existe...

Da altura de mãos dormentes de cama:
este é o tamanho que me davas
ao tirar dos parênteses todas as minhas palavras
cavando-as (profana!),
cada letra uma dança insana...

Do calor de águas sucintas e madrugadas possíveis:
esta é a duração certa de cada queda,
de tudo que provoca desníveis,
cada gota, cada pedra de granizo
que em vão tenta congelar o solo onde piso...

Sobra ainda um nome? "Serafim"?
Terra que se lavra?
Reticências, aqueles pontos finais sem fim?
Ou somente o mesmo vazio da palavra?

Do volume dos meus olhos... e agora os fecho:
esta é a extensão da palavra
que engoliu o amor
que havia comido todo o resto...

... é flor-granizo e/ou dentes de outono
que caem...
... e me fazem cair no sono...



por João Victor... aguardando alguém com sorrisos no rosto...

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